sexta-feira, 3 de julho de 2009

Obedientes e rebeldes

Obedientes e rebeldes

Os grupos animais às vezes mudam suas pautas de conduta, de acordo com as exigências da evolução biológica, cuja orientação tende a assegurar a conservação da espécie. As sociedades humanas se transformam historicamente, de acordo com critérios muito mais complexos, tão complexos... que não sabemos quais são. Algumas mudanças tentam assegurar determinados objetivos, outras consolidar certos valores, e muitas transformações parecem provir da descoberta de novas técnicas para fazer ou desfazer coisas. O único ponto indubitável é que em todas as sociedades humanas (e em cada membro individual dessas sociedades) há razões para a obediência e razões para a rebelião. Somos tão sociáveis quando obedecemos pelas razões que nos parecem válidas como quando desobedecemos e nos sublevamos por outras que consideramos de maior peso. Porque a política não é mais que o conjunto das razões para obedecer e das razões para se sublevar...
Obedecer, rebelar-se: não seria melhor que ninguém mandasse, para que não tivéssemos de procurar razões para obedecer nem de encontrar motivos para nos sublevar? Esta é mais ou menos a opinião dos anarquistas, gente pela qual reconheço ter bastante simpatia. Segundo o ideal anárquico, cada um deveria agir de acordo com sua consciência, sem reconhecer nenhum tipo de autoridade. São as autoridades, as leis, as instituições, a aceitação de que uns poucos guiem a maioria e decidam por todos, que provocam as infinitas dores de cabeça de que os humanos padecem: escravidão,
abusos, exploração, guerras...
(...) É possível uma sociedade anárquica, isto é, sem política? Os anarquistas
têm razão, por certo, pelo menos numa coisa: uma sociedade sem política seria uma sociedade sem conflitos. Mas é possível uma sociedade humana – não de insetos ou de robôs – sem conflitos? Será a política a causa dos conflitos ou sua conseqüência, uma tentativa de que não sejam tão destrutivos? Seremos capazes de viver concordes... automaticamente? Parece-me que o conflito, o choque de interesses entre os indivíduos, é algo inseparável da vida em companhia de outros. E quantos mais formos, mais conflitos poderão vir a se produzir. Sabe por quê? Por uma causa que em princípio parece paradoxal: porque somos sociáveis demais.
(...) De modo que vivemos em conflito, porque nossos desejos se parecem muito uns com os outros e por isso colidem uns contra os outros. Por excessiva sociabilidade também (por querermos ser todos muito semelhantes, por fidelidade excessiva aos da nossa terra, religião, língua, cor da pele etc.), que nos faz considerar inimigos os diferentes e proscrever ou perseguiros que diferem.
(...) No entanto, não acredite que o conflito de interesses, qualquer conflito ou confronto, seja ruim em si. Graças aos conflitos a sociedade inventa, se transforma, não pára. A unanimidade sem sobressaltos é muito tranqüila, mas revela-se tão letalmente soporífera quanto um encefalograma plano. A única forma de assegurar que cada um tenha personalidade própria, isto é, que sejamos verdadeiramente muitos e não um só feito por muitas células, é que de vez em quando nos confrontemos e rivalizemos com os outros. Talvez todos nós queiramos a mesma coisa, mas, ao nos enfrentarmos para consegui- lo ou ao focalizarmos o mesmo assunto de diferentes perspectivas, constatamos que não somos todos a mesma pessoa. Às vezes os que gostam de dar ordens dizem: “Vamos, todos como um só homem! De pé, todos como um só homem!” Belo disparate coletivista. Por que diabos temos de fazer todos alguma coisa como um só homem... se não somos um mas muitos? Façamos o que for, em harmonia ou discordância, é melhor fazê-lo como trezentos homens, ou como mil, ou como quantos formos, e não como um, já que não somos um.
(...) Repassando a história, tanto a mais antiga como a mais contemporânea, confesso-lhe que chego à conclusão de que essas objeções contrárias aos chefes e ao Estado têm bastante fundamento. Mas também acho evidente que esperar o milagre de que milhões de seres humanos consigam viver juntos de maneira automaticamente harmoniosa e pacífica, sem nenhum tipo de direção coletiva nem certa coação que limite a liberdade dos mais destrutivos ou dos mais imbecis (costumam ser os mesmos), não é coisa que pareça compatível com o que os humanos foram, são... nem com o que, pelo que tudo indica, poderão vir a ser. De modo que considero indispensáveis algumas ordens... ainda que não qualquer tipo de ordens; certos chefes... embora não qualquer tipo de chefes; algum governo... mas não qualquer governo. Voltamos assim – o que você quer que eu faça? – ao problema inicial, de que a política se ocupa: a quem devemos obedecer? Em que devemos obedecer? Até quando e por que temos de continuar obedecendo? E, claro, quando, por que e como será necessário rebelar-se?

Fernando Savater, Política para meu filho, São Paulo, Martins Fontes, 1996, p. 38-48

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